sexta-feira, 16 de setembro de 2011

“Sou agro”. Cuidado!

O agro-empresariado brasileiro anda preocupado com a sua imagem. Recentemente, o setor lançou a campanha “Sou agro”. Gente da popularidade de Lima Duarte e da lindeza de Giovana Antonelli fica encarregada de confidenciar ao povo brasileiro como é legal virar agro. Na cantada, ouve-se muito de “campeões de tecnologia”, “provedores de divisas”, “ambientalistas natos”, “patriotas de verdade”, etc. Entretanto, a tecla mais batida pela campanha é a seguinte: “Somos nós que alimentamos o mundo.”

Este afirmação contém umas verdades e esconde muitos problemas. Sem dúvida, o Brasil dispõe de condições privilegiadas para produzir grãos, fibras, óleos, leite e carne em grande escala, o que acaba favorecendo toda comunidade dos consumidores com um abastecimento constante a preços (cada vez menos) pautados pela grande oferta.

Mas os processos industriais para obtenção de alimentos, fibras e energia causam enormes problemas ambientais, uma crescente concentração fundiária e o esvaziamento populacional da zona rural. Os “agros” consideram tais conseqüências como secundárias, toleráveis em vista do seu papel como fiadores da segurança alimentar e energética global. A sociedade, assombrada com o fantasma de uma superpopulação faminta, tende a conformar-se com a posição do grande agronegócio. Por conseguinte, o governo, pouco questionado pela sociedade, continua subsidiando fortemente o setor, com políticas a gosto do agro-lobby.

A onda marqueteira do agronegócio brasileiro promete alimentar o mundo graças à excelência da sua tecnologia e do aproveitamento racional do espaço. Na realidade, porém, tal compromisso é cheio de ambigüidades e parcialidades. Seguem algumas considerações que não fazem parte do discurso dos “agros”, mas precisam ser levadas em conta, sob ameaça de caríssimos enganos.

1. Pelos levantamentos da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO, 64 % dos alimentos plantados no Brasil acabam no lixo, perdidos nos campos, nos transportes, nos armazéns, nas indústrias, nos pratos.
(http://www.fao.org/fileadmin/user_upload/ags/publications/GFL_web.pdf). O bom senso conclui que antes de produzir mais, devemos desperdiçar menos. Isto é possível. A própria FAO recomenda medidas que permitem reduzir as perdas pela metade, disponibilizando enormes quantidades de comida sem que ninguém precise consumir menos ou desmatar mais. Entretanto, economizar mais e desperdiçar menos significará uma redução na demanda de sementes, adubos, defensivos, máquinas, etc. E isto é justamente o contrário do que interessa aos “agros”.

2. Os “agros” costumam desperceber que uns comem em excesso enquanto outros passam fome. Ignoram que a crise de alimentação anda associada a uma crise nutricional que espelha a crise civilizacional do mundo industrializado. Parece que os “agros” acham desejável que todo mundo se aproprie do mesmo padrão alimentar e nutricional das sociedades ricas. Nestas, as pessoas consomem em média, para citar um exemplo, 90 kg de carne por ano, o que não lhes faz nada bem, mas ocupa cerca de 70 % das terras agricultáveis com a produção de ração animal para alimentar os bichos. A maior parte da soja não é convertida em alimento humano, e sim em ração animal, principalmente para criar gado, porcos e frangos. Segundo o “Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas”, a demasiadamente elevada criação de gado no mundo é considerada como uma “bomba climática”, já que os puns e arrotos dos animais provocam uma constante emissão de metano, um gás bem mais nocivo ao clima do que o dióxido de carbono. Constrange que ao menos oito de dez “agros” acham isto ridículo.

3. A expansão agropecuária desejada pelos “agros” significa pressões ambientais muito além das razoavelmente conhecidas conseqüências de desmatamento, esgotamento de água doce e eliminação da biodiversidade. Muitas pressões não acontecem necessariamente na região da exploração agropecuária. Seguem dois exemplos. A exorbitante maioria dos solos brasileiros depende de fertilizantes. Tais demandas vêm provocando uma crescente onda de exploração de minas para suprir a dependência do exterior (p.ex. 90% do potássio são importados). Hoje, a agricultura intensiva acaba sendo uma das mais fortes incentivadoras da expansão dos empreendimentos de minério, particularmente em regiões ecologicamente muito sensíveis como a Amazônia. Muito menos visível ainda é a passagem dos defensivos agrícolas pelo organismo dos consumidores. Olhando para Giovana Antonelli, quem é que repara que a mesma é sujeita de digerir anualmente 3,6 litros de agrotóxicos, o que é a média consumida pelos/as cidadãos brasileiros/as? O Brasil é campeão mundial na aplicação de agrotóxicos. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) mostram que 15% dos alimentos consumidos pelos brasileiros apresentam taxa de resíduos de veneno num nível prejudicial à saúde (veja http://www.ecologiamedica.net/2011/02/uso-de-agrotoxicos-no-brasil-deve.html). Não há nada de reconfortante no fato de que os “agros” engolem o mesmo tanto de veneno quanto a maioria dos demais brasileiros/as.

4. Amartya Sen, economista indiano laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, demonstrou no seu livro “Poverty and famines” que as crises de fome, com raras exceções, não existem por falta de alimentos e sim por falta de acesso aos mesmos. O arroz existe, mas o faminto carece do tostãozinho para adquiri-lo. Portanto, há um pressuposto precipitado no lado dos “agros” quando alegam que a sua capacidade produtiva salvará as pessoas da fome. Quem diz que futuramente os pobres terão mais facilidade de comprar a produção dos “agros” do que hoje? Os índices de preços apontam para o lado oposto: convivemos com um encarecimento assustador dos alimentos básicos. Se os “agros” fossem realmente preocupados com o abastecimento alimentar do mundo, perseguiriam, antes de tudo, as metas de rebaixamento dos preços, e subsidiariam massivamente campanhas que combatem a pobreza (aliás, a história mostra que o combate à pobreza é a medida mais eficiente para combater o crescimento populacional – o inverso, além de ser autoritário, surte menos efeito). Pelo visto, não tem nada disto na sua campanha.

5. Lembrando o famoso ditado de Ivan Illich: “A sede virou Coca Cola”, pode-se constatar que, na lógica dos “agros”, a fome vem virando “Monsanto”, “Nestlé”, “Kraft Foods”, etc. São mega-grupos que conseguem transformar seus produtos em necessidades. No entanto, olham muito antes para o valor das suas ações do que para a fome do mundo. Parece até tragicômico como a maioria dos “agros” menores se joga nos braços dos “meta-agros”, os quais impõem não somente as regras do jogo em toda cadeia agro-industrial, como também determinam cada vez mais a fixação dos preços nas bolsas internacionais onde os alimentos viram meros ativos financeiros. Cada vez menos, os preços dos alimentos respondem à real oferta e procura, e sim, refletem os caprichos especulativos em torno de safras nunca colhidas, perdas nunca materializadas, transações nunca efetuadas. São as super-capitalizadas “Monsanto”, “Nestlé”, “Kraft Foods”, etc. que lucram com isto. Do outro lado, os que mais necessitam de reais alimentos são os que pagam mais caro neste sistema perverso. Querem distância dele, almejam “soberania alimentar” – um termo, contudo, que não consta no vocabulário dos “agros”.


Diante da promessa dos “agros” de alimentar o mundo, vale citar o ditado de um povo africano muito experiente com a fome: “As asas maiores não garantem o vôo mais alto”. É o que os “agros” negam na sua campanha triunfalista, como banalizam os impactos nocivos das suas atividades. Cuidado, então, com as cantadas de Duarte e Antonelli.


Martin Mayr
Agência 10envolvimento – Barreiras – BA
Agosto de 2011

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